São 102 anos desde que ela chegou e 52 de que se foi. Dançarina, cortesã, adestradora de cobras, ícone e mártir da causa da liberdade sexual feminina. Quem se lembra dela? O que se sabe sobre ela vem principalmente da imprensa da época e da biografia Luz del Fuego, a Bailarina do Povo, de Cristina Agostinho (Best Seller, 1994).
Dora
Vivacqua/ Luz Del Fuego, que nasceu na segunda-feira de Carnaval de 1917 numa
tradicionalíssima família de políticos, empresários e intelectuais de Cachoeiro
de Itapemirim, no interior do Espírito Santo. É interessante observar que neste
ano do nascimento de Dora foi fuzilada em 15/10/1917 Mata Hari, a maior
bailarina e cortesã como espiã da Alemanha contra a França.
Décima
quinta filha do casal Antônio e Etelvina Vicacqua, desafiava
a normalidade desde a infância. Na adolescência, se divertia zombando
do recato das irmãs e provocando os garotos.
Nos
anos 1930, ainda adolescente, Dora foi morar com sua irmã Angélica. Era
sistematicamente assediada por Carlos, o cunhado. E cedeu. Quando são
flagrados, a culpa recai sobre ela. Psiquiatras somam A e B, do passado incomum
e sua ação insana, e ela é diagnosticada com esquizofrenia. São dois meses de
internação no Hospital Psiquiátrico Raul Soares, em Belo Horizonte. Era
declarada oficialmente insana.
Após a alta, um de
seus irmãos, Achilles, a convence a passar uma temporada na fazenda de Archiau,
outro irmão, 14 anos mais velho que ela. A moça passou a desfrutar de alguma
liberdade, até o dia em que decidiu aparecer vestida de Eva – três folhas de
parreira e duas cobras-cipós como braceletes – para o filho do administrador da
fazenda.
Aos
21 anos Dora foge para o Rio de Janeiro.
Dora
era audaciosa nos namoros e no modo de se vestir, odiava sutiãs. Muito antes do
biquíni, ela já frequentava a praia de Marataízes (ES) de calcinha e um top
feito de lenços. No Carnaval, suas fantasias, feitas por ela mesma, eram
mínimas e transparentes. Para essa Eva, o Rio de Janeiro era o paraíso.
Lá
ela retoma um antigo romance com José Mariano, filho do famoso arquiteto de
mesmo nome e um playboy dos anos 1930 com o mesmo apetite por aventura que
Dora.
Como conta o livro
A Bailarina do Povo, Dora não era exatamente um talento da dança. Para se
destacar ela recorre às cobras, uma de suas obsessões. A inspiração veio de um
livro com imagens de sacerdotisas da Macedônia envoltas em cobras. Ela então
compra jiboias da Amazônia e ensaia com elas por quase um ano, e passa a se
chamar Luz Del Fuego.
Mas a fama só vem
em 1944, quando ela se torna a atração da noite do Circo Pavilhão Azul como “a
única, a exótica, a mais sexy e corajosa bailarina das Américas: Luz Del Fuego
e suas incríveis serpentes”. Fazia seu espetáculo na companhia do casal de
jiboias Cornélio e Castorina.
Como
seria sua marca registrada, Fuego apareceu nua. A primeira artista do Brasil a
fazer isso. E logo passou a acumular uma longa ficha de delitos contra a moral
e os bons costumes. Foi expulsa do Theatro Municipal num baile de Carnaval após
se fantasiar de Noivinha Pistoleira e dar tiros de revólver no teto do teatro.
Em São Paulo, parou o Viaduto do Chá porque decidiu divulgar seu show
fantasiada de Iemanjá: nua, com cabelos e pelos tingidos de verde-esmeralda. Luz
Del Fuego era o nome de um famoso batom argentino.
No fim dos anos
1940 Luz del Fuego é contratada pela primeira vez pelo casal Juan Daniel e Mary
Daniel, donos do Follies, um pequeno teatro em Copacabana. O espetáculo Mulher
de Todo Mundo fez muito sucesso e ela vai parar nos jornais. Sua família
percebe, chocada, o que ela fazia e o quanto era célebre por isso.
O
teatro de revista e suas vedetes são sensação no Brasil na metade do século 20.
Revistas inteiras são dedicadas ao tema. A fama traz dinheiro e,
principalmente, influência. Dona de uma educação esmerada, fruto da origem
abastada, ela transita à vontade nas rodas de artistas, intelectuais e também
nos corredores do poder.
Aos
30, estava em seu auge. E sentiu que era a hora de usar sua fama para abordar
outras questões. Já vegetariana, sem fumar ou consumir bebidas alcoólicas, e
com um óbvio interesse pela fauna e flora, tornou-se a primeira apóstola do
naturismo no Brasil.
A nudez, que um dia foi vista como sintoma de uma mente transtornada, depois uma profissão, tornava-se um estilo de vida. No fim da década de 1940 Luz del Fuego se dedica intensamente à teorização do movimento naturista brasileiro.
Fotografada
em seus trajes favoritos
Em
1949 lançou o Partido Naturalista Brasileiro (PNB), que teria a defesa do
divórcio, da mulher e do nudismo como principais bandeiras. O partido, porém,
não obteve registro.
Ela não se deu por
vencida. Em 1950 usou de sua influência para pedir ao ministro da Marinha,
Renato Guilhobel, a concessão de uma ilha para criar um clube de nudismo, a
Ilha do Sol. Fuego funda o Clube Naturalista Brasileiro”.
A
ilha, apesar de não fazer parte de qualquer roteiro turístico oficial – por
razões óbvias –, receberia várias estrelas do cinema americano, como Errol
Flynn, Lana Turner, Ava Gardner, Tyrone Powel, César Romero, Glenn Ford,
Brigitte Bardot e Steve MacQueen. Pelo pioneirismo, 21 de fevereiro, data de
nascimento de Luz del Fuego, é o Dia do Naturismo.
O que, no fim,
pegou Luz del Fuego não foi seu lado provocadora, mas ecologista. Ela denunciou
à polícia que certos pescadores estavam agindo com explosivos nos arredores da
ilha. Isso resultava em grande mortandade de peixes. Com sua fama de “mulher da
vida”, ninguém deu ouvidos. Exceto os pescadores: em 19 de julho de 1967, os
irmãos Alfredo e Mozart Teixeira Dias descem à ilha, recebidos com alarde pelos
cachorros e por uma Luz del Fuego portando um revólver.
Dizem a ela que seu barco está sendo roubado e a convencem a subir no seu. A alguns metros da costa, ela recebe uma pancada na cabeça e é aberta à faca, como um peixe, amarrada numa pedra e descartada ao mar. Voltam então para fazer o mesmo com seu caseiro, Edigar. Os corpos só são achados em agosto. Com um deles confessando o crime, os pescadores terminam presos. Ainda hoje, as ruínas das instalações do camping e morada final da ativista ainda podem ser vistas na Baía de Guanabara.
Exímia
gestora da própria imagem, se vivesse hoje, Luz del Fuego estaria em casa na
intenet. Teria odiadores, que a chamariam de “louca” para baixo. E seria tão
relevante quanto foi em seu tempo.
“Os
saltos que a gente dá na sociedade, as conquistas, os avanços, são graças às
corajosas, às loucas. A Luz del Fuego tinha, nos idos dos anos 40 e 50, uma
consciência de ‘o corpo é meu e portanto sou eu quem diz o que fazer com ele’”,
afirma Schuma Schumaher.
“Ela tinha um
projeto político para a sociedade”, diz Nataraj Trinta. “Mulheres não são só
‘aparição’ e performance, têm propostas, são capazes de disputar poder. Luz del
Fuego foi um ícone da audácia, coragem, crítica à hipocrisia social.”
0 comentários:
Postar um comentário