Toda a
comunidade judaica da cidade surgiu a partir de um punhado de imigrantes no
século 17. E todos eles vieram de Pernambuco.
Por Felipe
Germano
Colaboração Alexandre Dimas
Quatro casais, duas viúvas e 13 crianças: os 23 do
Recife. Mauricio Pierro/Superinteressante
Nova York é a cidade mais judaica
depois de Tel Aviv, o centro financeiro de Israel. São 2 milhões de judeus
– um a cada três brancos da Grande Maçã. Em 1654 eram só 23. A memória deles
segue preservada em NY.
Três cemitérios ali são dedicados
aos judeus pioneiros da cidade e seus descendentes. Nas lápides, sobrenomes
familiares para quem vive no Brasil: Fonseca, Seixas, Cardoso, Bueno. Sim,
porque os primeiros 23 judeus da maior cidade dos EUA vieram do Brasil. Mais
especificamente, do Recife. É a história deles que você vai conhecer agora.
Tudo começa com a relação estreita entre os judeus e as Grandes
Navegações. Já na esquadra de Cabral havia tripulantes que seguiam a Torá.
Natural. As técnicas de navegação eram dominadas por imigrantes árabes e judeus
– membros de elites familiarizadas em estudar temas como astronomia e
matemática, essenciais para o sucesso das empreitadas marítimas. Um desses
judeus era um certo Fernando de Noronha. O homem que batiza o arquipélago
pernambucano era um navegador judeu que usou suas habilidades para firmar um
contrato que se mostraria mais importante do que parecia: o acordo entre
comerciantes europeus e a Coroa Portuguesa para a exploração do pau-brasil
nestas terras.
Os judeus também aproveitaram
as Grandes Navegações por um motivo mais urgente que a
confecção de novos negócios: a sobrevivência. Eles precisavam sair de Portugal.
A Inquisição vinha ganhando cada vez mais força na Europa, tanto que o movimento
já havia os expulsado da Espanha, em 1492.
Com a perseguição a não cristãos
aumentando sem parar, atravessar o mundo em busca de paz não era má ideia, até
porque havia incentivo da Coroa. “Portugal chegou a distribuir terras no Brasil
para os judeus. A Coroa queria que eles povoassem o Nordeste. Era uma forma de
a Coroa garantir a posse das terras”, diz Tania Kaufman, fundadora do Arquivo
Histórico Judaico de Pernambuco. Mas não pense que se tratava de caridade. “A
imigração forçada também era uma maneira de castigar os judeus. Uma punição
pelo crime de negar o cristianismo”,
completa.
Apesar de interessante para a
Coroa que a comunidade judaica deixasse as terras lusitanas, havia uma
condição. Para terem direito a terras brasileiras, os judeus deveriam pelo
menos fingir que haviam se convertido ao catolicismo. Depois de uma cerimônia
rápida de batismo, o judeu passava a ser considerado um “cristão novo”, e
ganhava o direito de partir.
Por aqui, os “convertidos”
assumiram uma posição de protagonismo. “Um dos exemplos mais interessantes é o
de uma senhora de engenho chamada Branca Dias. Ela e o marido vieram de
Portugal para fugir da Inquisição e – além de reunir judeus para praticar a
religião por debaixo dos panos – ela fundou a primeira escola para meninas do
Brasil”, afirma o pesquisador Paulo Carneiro, autor do livro Caminhos
Cruzados, sobre a história dos judeus no País. Pouco a pouco, vários judeus
foram se tornando grandes comerciantes e empresários, principalmente no
Nordeste. A obrigação de esconder as próprias crenças, no entanto, ainda era um
problema 130 anos após o Descobrimento.
Foi quando um grupo de invasores
resolveu mudar isso.
Laranja Mecânica
Voltemos para aquele Portugal da
Inquisição. É claro que nem todos os judeus do país tinham a intenção de zarpar
para o outro lado do Atlântico. A saída para a maior parte deles foi fugir das
terras lusitanas – e de qualquer outra terra dominada por católicos.
Boa parte se bandeou para a
Holanda. O motivo era simples: os Países Baixos eram, por definição, um local
amigável. A União de Utrecht, tratado que serviu para unificar o que conhecemos
hoje como Holanda, era uma meca da liberdade religiosa. “Ninguém poderá ser investigado
ou condenado por sua religião”, diz o texto. Bingo. Era uma garantia
legislativa de que, por ali, os judeus teriam paz.
Bom para todo mundo, já que a
tradição mercantil judaica ajudou na maior empreitada da história dos Países
Baixos: as companhias que investiam no comércio transoceânico com dinheiro
privado. Eram as duas “Companhias das Índias”. A Oriental, que mandava navios
para o Sudeste Asiático, e a Ocidental, especializada nas Américas. E que
estava de olho no Brasil.
No dia 14 de fevereiro de 1630,
67 navios e 7 mil homens holandeses apareceram na costa de Pau Amarelo, no
litoral de Pernambuco, e tomaram posse de um naco do território que hoje forma
o Nordeste brasileiro. Eles sabiam bem o que queriam: açúcar. E a sorte estava
completamente a seu favor. Os holandeses tinham a melhor das armas secretas:
centenas de judeus que entendiam justamente sobre o refino de açúcar e, melhor
ainda, eram fluentes em português, já que tinham fugido de Portugal.
A invasão animou até mesmo a
população invadida. Pela primeira vez, a liberdade religiosa chegaria à
colônia. Com isso, os “cristãos novos” de Pernambuco puderam se assumir
livremente como judeus. E foi ali, nas praias do Nordeste, que o judaísmo conheceu,
de fato, o Novo Mundo. Em 1636 surgia a primeira sinagoga das Américas, no
Recife – e ela continua lá, na Rua Bom Jesus, número 197. A poucos metros dali,
está o primeiro cemitério judaico deste continente. E não foram só obras
religiosas que eles levantaram. “Os judeus foram responsáveis por reformas
estruturais na cidade, como a ponte Maurício de Nassau (a maior do Brasil até
então, com 180 metros), ligando a ilha de Antonio Vaz à cidade”, diz a
historiadora Daniela Levy, autora do livro De Recife para Manhattan.
Bye bye, Brasil
A prosperidade, no entanto, durou
pouco. Vinte e quatro anos depois da invasão holandesa, em 1654, Portugal
retomou o controle de Pernambuco. E não estava nos planos da Coroa deixar os
judeus viverem por ali. O então governador da região, Francisco Barreto de
Menezes, deu o ultimato: quem quisesse sair de lá teria o prazo de quatro
meses. Depois disso, teria que lidar com a Inquisição. O governo pernambucano
até chegaria a oferecer barcos para que eles saíssem do País.
Não foram dias fáceis. O alto
número de pessoas tentando sair ao mesmo tempo congestionou as embarcações,
tudo enquanto as represálias dentro da cidade cresciam rapidamente. Isaac Aboab
da Fonseca, um rabino que vivia na região, registrou: “Muitos de nós foram
mortos, outros pereceram à míngua; Sobramos poucos, mesmo assim, expostos às
humilhações. Os que estavam habituados a comer à mesa de ouro, davam-se felizes
por um pedaço de pão seco e bolorento, num ambiente agitado”.
Fugir era a única opção. Muitos
se infiltraram no sertão. Historiadores chegaram a encontrar artefatos judaicos
dentro do Quilombo dos Palmares, que também ficava em Pernambuco e foi
contemporâneo à ocupação holandesa. A maioria, no entanto, resolveu escapar pelo
mar. Os destinos variavam: alguns iam para a região das Antilhas, dominada
pelos holandeses. O destino favorito, porém, era Amsterdã.
Made in USA: com sobrenomes como Fonseca, Seixas,
Cardoso e Bueno, os descendentes dos primeiros judeus de NY ajudaram a fundar a
bolsa de valores mais importante do planeta, e boa parte da identidade
nova-iorquina. Mauricio Pierro/Superinteressante
Os 23 protagonistas desta
reportagem estavam em um dos vários navios que saíram rumo à capital holandesa
em janeiro de 1654, juntos com outras dezenas de refugiados. Mas a viagem não
começou bem. Mal o navio tinha saído da capital pernambucana e já topou com um
bando de piratas. O navio acabou destruído. Boa parte dos passageiros morreu.
Mas um outro navio surgiu no
horizonte. Era uma embarcação francesa, capitaneada por um certo Jacques Lamot,
que fez uma proposta: resgataria os sobreviventes, e os escoltaria até a ilha
mais próxima. Em troca de um bom montante de dinheiro, claro. Uma ótima opção
para quem estava com a morte certa. A carona foi até a Jamaica. Péssima notícia
para os pernambucanos, já que a região estava tomada pela Inquisição.
Ironicamente, a Igreja Católica
ignorou os judeus, mas não perdoou os cristãos novos. Motivo: eles haviam se
convertido ao catolicismo, e trair a religião de Roma seria ainda pior do que
nunca ter sido adepto dela. Prenderam os batizados, e os outros puderam partir.
Só que a única saída era pelo barco de Lamot. E ele não queria ir para
Amsterdã. Seu destino era Nova Amsterdã – a Nova York de hoje.
A chegada
Eles aportaram em 7 de setembro
de 1654. Lamot estava ensandecido: os judeus não tinham dinheiro para pagar a
viagem. Em terra firme, as coisas não estavam tão melhores. O governador de
Nova Amsterdã, Peter Stuyvesant, tinha ojeriza à ideia de que aqueles 23 judeus
desembarcassem em seu território. Eram apenas seis famílias (compostas por duas
viúvas, quatro casais, e 13 crianças), mas, para ele, um novo grupo de pessoas,
de outra religião, poderia ser um problema para a cidade.
Isso porque, não se engane, a
Nova York de 1654 era bem pior do que o Recife daquele mesmo ano. Nova
Amsterdã, afinal, era composta por cerca de 750 pessoas que mal se entendiam,
já que falavam 18 línguas diferentes. A única coisa que os unia era uma mesma
doutrina: o calvinismo.
O posicionamento de Stuyvesant
era simples: eles não entrariam. Lamot é quem não gostou da ideia, já que
queria receber seu dinheiro. O francês e o governador, então, fizeram um
acordo: confiscariam os bens dos judeus e leiloariam tudo entre a população da
cidade – entre esses bens estavam algumas mudas de pau-brasil.
Mas as vendas não geraram
dinheiro o bastante. Lamot, então, decidiu que seria pago por meio de serviços
forçados. Dois dos 23 judeus seriam, a partir de então, seus escravos. Mas a
Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, que também era presente em Nova
Amsterdã, resolveu intervir. Os representantes da empresa clamavam que deviam
lealdade a quem resistiu em Pernambuco, e decidiram entregar o dinheiro que
Lamot queria. As negociações levaram dias. Nesse meio-tempo, os novos
imigrantes não podiam sair da embarcação. Lá, comemoraram o Rosh Hashaná. Foi o
primeiro ano-novo judaico de Nova York – celebrado em bom português.
A partir daí a situação melhorou,
mas nem tanto. Os judeus eram obrigados a pagar impostos inexistentes para o
resto da população e, enquanto esteve no poder, Stuyvesant criava empecilhos
para a vida judaica. De qualquer forma, eles foram se estabelecendo. Asser
Levy, um dos 23 (e que hoje batiza um parque em NY), se tornou conhecido na
cidade. Virou açougueiro, comerciante referência na região e chegou a processar
Stuyvesant pelas taxações excessivas. Mas mais do que qualquer conquista
própria, ele e seus 22 companheiros de viagem fizeram algo bem maior: atraíram
mais e mais judeus.
Agora que a cidade tinha sua
comunidade judaica, cada vez mais famílias vindas de terras dominadas pela
Inquisição passaram a desembarcar em Nova Amsterdã – até aqueles cristãos novos
que haviam ficado presos na Jamaica conseguiram completar a jornada.
Em 1664, apenas dez anos depois
da chegada dos 23 do Recife, a cidade mudaria de nome para Nova York. E os
descendentes diretos e indiretos desses pioneiros se tornariam fundamentais
para a história dos EUA. Um desses descendentes, Benjamin Mendes (1748-1817),
fundou a Bolsa de Nova York. Outro, Gershon Mendes Seixas (1745-1826), é tido
como um dos maiores líderes religiosos dos EUA – era o chefe da congregação
judaica em 1776, o ano da Independência americana. Benjamin Cardoso (1870-1938)
fez parte da Suprema Corte (o STF dos EUA), nos governos Hoover e Roosevelt. A
presença dos descendentes também está presente no maior símbolo da cidade: a
Estátua da Liberdade.
Quando Nova York recebeu a obra
de presente do governo francês, no final do século 19, a prefeitura não queria
bancar a construção do pedestal. O comitê que tratava da instalação da estátua,
então, foi pedir dinheiro para a população, com a promessa de publicar
agradecimentos pelas doações nos jornais. Ajudou, mas não resolveu. Foi quando
Emma Lazarus, poetisa renomada, e descendente dos 23 do Recife, resolveu
leiloar uma de suas obras. O texto em questão era The New Colossus,
um poema inspirado na história de seus antepassados. Com isso, o comitê
arrecadou dinheiro suficiente para finalizar as obras. E mais importante: um
trecho do texto se tornou praticamente o lema de Nova York, e está gravado
desde 1903 numa placa de bronze aos pés da estátua, dando boas-vindas a todos
os imigrantes que fossem tentar a vida na cidade: “Venham a mim os exaustos, os
pobres, as massas que anseiam por liberdade”.
Diáspora pernambucana
Como 23 judeus que viviam no Recife foram parar sem
querer em Nova York, onde mudariam a história do mundo.
– Mauricio Pierro/Superinteressante
1. As primeiras incursões de
judeus para o Brasil começaram já com Cabral. Nos anos seguintes, muitos
aproveitaram a colônia para fugir da Inquisição.
2. A partir da ocupação
holandesa, em 1630, viveram uma inédita liberdade religiosa, e construíram no
Recife a primeira sinagoga das Américas.
3. Com a retomada portuguesa, a
maioria dos judeus fugiu para Amsterdã. Mas não foram todos. Muitos saíram de
Pernambuco direto para as Antilhas, dominadas pela Holanda.
4. Um grupo que planejava ir para
a capital da Holanda foi atacado por piratas. Os 23 sobreviventes mudaram de
destino, rumo à Nova Amsterdã, a atual Nova York.
5. Lá, formariam a primeira
comunidade judaica de Nova York, dando o ponta-pé inicial na história da
cidade.
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